“A liturgia é a vida tornada Arte”, já dizia Romano
Guardini. O que é a força para a vida ativa, é a beleza para a vida contemplativa da Igreja. A Igreja não é somente uma estrutura para fins práticos, mas também plena de sentido em si
mesma, é vida que se torna arte. E esta arte é manifestada na liturgia.
Uma determinada coisa é bela quando a sua essência e significação íntimas
são
expressas de modo total no seu ser. É nessa “expressão total” que reside a beleza. Pulchritudo est splendor veritatis –
est
species boni, dizia a filosofia antiga: “A beleza é o esplendor perfeito que revela a verdade essencial e o bem
interior do ser”.
A linhagem agostiniana de Ratzinger também se manifestou na atenção que
ele
presta à beleza. Embora não tenha tratado esse tema como uma questão
acadêmica, em tudo o que escreveu sobre a
beleza fica implícito a preferência pelas linhas seguidas por Santo
Agostinho, Jean de la Rochelle, São
Boaventura, Hans Urs
von Balthasar.
Ao contrário de tantos outros
que,
pelo menos no contexto litúrgico, estão
impregnados da atitude kantiana, a qual apresenta a estética como mera questão
de gosto,
Ratzinger não considera
que
a categoria
da beleza seja
algo
exterior à teologia. Não obstante,
em
sua primeira Exortação Apostólica, a Sacramentum
Caritatis, o papa Bento XVI assevera que “tudo o que se refere à Eucaristia deve ser identificado pela beleza”. Ele lembra aos sacerdotes e
fiéis que “a liturgia, como aliás a revelação
cristã, tem uma ligação intrínseca
com
a beleza: é esplendor da
verdade
(veritatis
splendor)”. Citando
São
Boaventura, ele escreve: “em Jesus, nós contemplamos
a beleza e o esplendor
das
origens” e isto não é visto “como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo o alcança, fascina e arrebata,
fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira
vocação: o amor”. Aqui ele reitera a visão de São Boaventura de que Deus permite seja Ele
vislumbrado, antes de tudo, na criação, na beleza e na
harmonia do cosmos. Com referência à experiência de Pedro,
Tiago e João na Transfiguração, ele sustenta que a beleza “não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, como atributo do próprio Deus e da
sua
revelação”, ou seja, a beleza para
ele, é um elemento essencial à ação
litúrgica, pois pertence
ao
Mistério de Deus, “é expressão excelsa
da
glória de Deus
e,
de certa forma, constitui o céu que desce à terra”.
Ratzinger se afasta das tradições protestantes e também daqueles
que, dentro
da
própria Igreja, têm aceitado
a crença protestante de que a beleza é
preocupação de fariseus, ou aquilo no qual se acredita a teologia da libertação:
que um amor à beleza está vinculado à indiferença burguesa pela miséria dos
pobres. Ele tem empatia com a reverência
protestante pelas
Escrituras e por
seu
foco na Cristologia, mas
não
se identifica com a hostilidade protestante contra a beleza. Como von Balthasar escreveu: “qualquer pessoa que seja enamorada da beleza tremerá de frio no celeiro da Reforma e se sentirá atraído por Roma”.
Não obstante, um dos problemas atuais é que a pobre alma mediana, que está tremendo no celeiro da Reforma, encontrará o mesmo frio no celeiro de muitas paróquias católicas. A partir
desta perspectiva, a
preocupação com o belo não é um problema que surgiu somente após o Concílio, e não foi por culpa da “nobre simplicidade” pedida
por
ele, mas por más
interpretações dos documentos conciliares e de
pensamentos
que surgiram antes do Vaticano II.
Balthasar, na introdução ao primeiro volume de sua obra monumental
Herrlichkeit (Glória), na qual desenvolveu uma teologia sistemática focada na importância da beleza, escreve:
A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode atrever-se a pronunciar, porque esta não
faz
outra coisa a não
ser coroar, como auréola de esplendor inapreensível, a
estrela dupla da verdade
e do bem e sua relação
indissolúvel. Esta é a beleza altruísta, sem a qual o velho mundo era incapaz
de ser compreendido, mas
que deixou, na ponta dos pés, o moderno
mundo
dos interesses, abandonando-o
à sua cobiça e tristeza. Esta é a beleza que já
não
é amada ou mesmo guardada pela religião, mas como máscara arrancada de seu
rosto, revela os traços que ameaçam ser incompreensíveis para os homens.
Esta é a beleza em que já não ousamos acreditar e que
transformamos em aparência para que possamos nos libertar dela sem remorsos. Esta é a beleza, enfim, que
requer (como é
demonstrado hoje), pelo menos na coragem e força de decisão da verdade
e da bondade,
e que não se deixa
reduzir
ao
ostracismo e separar dessas suas duas irmãs
sem
arrastá-las
consigo em uma misteriosa vingança.
São palavras de clara condenação, por parte de um teólogo bem “moderno”, do
espírito funcionalista típico da modernidade,
que é incapaz de apreciar o valor das coisas belas que
não
tenham um reflexo imediato no campo da utilidade. Como compreender
hoje
o valor dos detalhes minuciosos que os artistas
traçaram sobre as abóbadas de inúmeras igrejas e que são inúteis, porque não
são
perceptíveis para quem vê a abóboda da nave? Como justificar o trabalho
fadigoso dos mestres do mosaico que passavam dias concebendo obras em
locais não visíveis das catedrais medievais? Se a pintura ou o
mosaico não
serão vistos, não serão usufruídos
por
olho humano algum,
de
que adiantou
tanta dificuldade?
A beleza neste caso não implica
uma
perda
de
tempo e energia? E também: qual a utilidade da beleza dos paramentos e dos vasos sagrados, se o pobre morre de fome ou não tem com que cobrir sua nudez? Essa beleza não tira recursos que deveria ser destinado ao cuidado dos mais
necessitados?
E, no entanto, a beleza é proveitosa. E serve precisamente quando é gratuita, ou seja, quando brota
da gratidão
do coração do homem, quando não busca
uma utilidade imediata, quando
não depende
apenas de uma finalidade prática, quando é irradiação de Deus. E quando não se sabe apreciar
o valor gratuito
(ou seja, da graça) da beleza, em especial da beleza litúrgica, dificilmente se
conseguirá realizar um ato adequado de culto divino. Continua Von Balthasar:
“Quem, ao ouvir falar dela, sorri, julgando-a como um resíduo exótico de um
passado burguês, desse se pode ter certeza de que secreta ou abertamente
já não é capaz de rezar
e, depois, tampouco o será
de
amar”.
Ele insiste que o
homem moderno, colocado diante do
Verbo
e de suas criaturas, tem de reaprender a
ver aquilo que revela uma teofania, a partir da beleza transcendental.
Nesta perspectiva, tanto a vida do Redentor como
as maravilhas da criação aparecem em seu caráter, embora abismático, como
algo sublime e
majestoso, submerso no gratuito
mistério do amor de Deus.
Ratzinger compartilhará do pensamento de Von
Balthasar. Para ambos, a beleza da liturgia, particularmente do rito, tal
e qual, corresponde à ação
santificadora própria da sagrada liturgia, a qual é obra de Deus e do homem, celebração que dá glória ao Criador e Redentor e santifica a criatura redimida.
Deste modo, conforme a natureza composta do homem, a beleza do rito deve
ser
sempre corpórea e espiritual, mostrando o visível e o invisível. Do contrário, ou se cai no esteticismo, que pretende satisfazer o gosto, ou no pragmatismo, que supera as formas nas buscas utópicas de um contato “intuitivo” com o divino. No fundo, em ambos os casos,
passa-se da espiritualidade à emotividade.
O risco hoje não é tanto o do esteticismo e sim, muito mais o do pragmatismo
informal. A necessidade que se tem hoje, é não tanto de simplificar e de extrair o supérfluo, mas de redescobrir o decoro e a majestade do culto divino,
ou
seja o seu verdadeiro espírito.
Aqui a sagrada liturgia da Igreja atrairá o
homem da nossa época não se vestindo cada vez
mais com as vestimentas da
cotidianidade anônima e cinza, a qual já está muito acostumada, mas vestindo
o “manto real” da verdadeira beleza, vestidura sempre nova e jovem, que a faz
ser
percebida como uma janela aberta ao céu, como ponto de contato com o Deus Uno e
Trino, a cuja adoração
está
ordenada, através da
mediação de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.
Daqui segue-se que na celebração litúrgica não é admissível qualquer
forma de
minimalismo e de pauperismo. E isto, sem dúvida, não para fazer espetáculo ou em vista de um esteticismo
vazio. Nas
diversificadas formas antigas e modernas em que encontra expressão, o belo constitui a modalidade própria
em
virtude da qual nas nossas liturgias resplandecem, ainda que de maneira
sempre pálida, o mistério da beleza do amor de Deus. Eis por que motivo nunca se
fará o suficiente para tornar os nossos ritos simples, enquanto claros no seu desenvolvimento, nobres e bonitos. É quanto nos ensina a Igreja, que
na
sua longa história jamais teve receio de “dissipar” para
circundar a celebração litúrgica com as expressões mais elevadas da arte: da arquitetura
à escultura, à música e às alfaias sagradas. É quanto nos ensinam os santos
que, não
obstante a sua pobreza pessoal e a sua caridade heroica, sempre desejaram que ao culto se destinasse quanto há de melhor. Bento
XVI
escreve:
As nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca conseguirão expressar totalmente
a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos
ritos jamais será bastante requintada, suficientemente cuidada nem
muito elaborada,
porque nada
é
demasiado
belo para Deus, que
é a
Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão
um pálido reflexo da liturgia
que
se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la.A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito
próprio, Cristo
ressuscitado e glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja no seu agir.
Com estas palavras, ele recorda de novo que a liturgia é obra do Cristo total e,
por conseguinte, também da Igreja. Da afirmação que a liturgia é obra da Igreja derivam algumas considerações de não pouca importância
para
aquela essência da liturgia que aqui foi explicada. Com efeito, quando se diz que a
Igreja constitui um sujeito que age,
faz-se referência à Igreja inteira, enquanto
sujeito vivo que atravessa o tempo, que se
realiza na comunhão hierárquica, que é uma realidade que ainda peregrina sobre a terra e, ao mesmo tempo,
uma
realidade que já chegou às margens
da
Jerusalém celeste.
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